quinta-feira, janeiro 16, 2003
esta vida é uma viagem
pena eu estar
só de passagem
p.l.
O ônibus do terror
Bom, eu estava no Rio.
Meu namorado me abandonou na segunda, voltou de carro. Que, diga-se de passagem, só deu incomodação. Depois perguntam porque eu não tenho um. Não tenho, não quero e nem sei dirigir, pra falar a verdade. Depois de dias parado em uma esquina de Copa, o pobre corsinha foi rebocado. Depois de pagar o resgate, ele, o namorado, voltou sozinho e quase morreu na estrada. Fiquei um dia a mais para uma reunião de negócios, quem diria, não é? Mas foi. Na noite anterior, Maldita - a festa, onde descobri que olfato de grávida não combina com locais fechados com gente suando e cigarro. Rapaz, eu e o Beanie não conseguimos ficar lá mais de duas horas, logo isso, logo eu com minha ex-carteira de Luckies por dia, logo eu não consigo mais sentir cheiro de cigarro, não posso suportar aquele cheiro no cabelo, aquela fumaça na pele, yuk yuk yuk. Voltei cedo, bebi pouco, fumei quase nada, nesta
nova vida sóbria, temporária e estranha. E não encham o saco porque o Doutor me disse que eu posso continuar bebendo minhas cervejas e meus vinhos moderadamente, assim como disse que prefere que eu fume dois, três cigarros por dia do que fique neurótica. E eu acredito no Doutor.
Mas eu ia contar da viagem.
Foi tudo planejado para que eu tivesse a pior viagem da minha vida. Comprei passagem para o último ônibus, todo direitinho, cheio de coisas para apoiar as pernas e comidinhas e bebidinhas e travesseiro e filminho, pouquíssima gente, cada um esparramado em dois bancos, o ônibus quase saindo, eu já botando as pernas para cima do banco quando surge aquela pessoa. Ele caminha pesadamente, suado da pressa para não perder o último ônibus, e eu soube naquele momento que o lugar dele era ao meu lado. Bem devagar, ele caminha, caminha, passo de elefante, pára. Olha o bilhete, olha a poltrona ao lado da minha. Bloft. Abanca-se e me amassa no cantinho. O sujeito tinha uns 150 quilos, mais ou menos. E cheiro de queijo com bergamota. Meu estômago se encolheu no lado oposto ao sujeito. Beanie, lá dentro, tampou o nariz e fez uma careta. O horror, o horror. O Gordo ocupou todos os espaços possíveis, meus e dele, enquanto eu tentava espremer minha barriga cheia de meses contra a janela, lembrando da velha máxima do sábio Calvin: nada é tão ruim que não possa piorar. Grande Calvin.
Em dez minutos de estrada o Senhor Gordo dorme. E ronca. Mas não era um ronco assim, ignorável. Era o pior ronco que já vi na minha vida. Sim, porque dava pra ver. Ele parecia querer engolir toda a cara, aspirar os dentes e englobar o nariz. Um pesadelo de verdade, e ele fedia. Tentei prestar atenção no filminho besta que passava, mas era humanamente impossível com aquela usina de roncos babando ao meu lado.
Ainda havia uma esperança. Triunfante, saquei BRMC e meu discman, companheiros de estrada e... ele estava sem pilhas.
Pânico.
Desespero.
Lágrimas.
Tentei recorrer a algodões nos ouvidos, enrolei o cobertor na cabeça, improvisei um fone com com o travesseiro, mas nada adiantou. Nada. Não dormi (impossível), não li (requer concentração), não vi a estrada (estava escuro), não respirei pelo nariz (o cheiro do Senhor Gordo, aliado ao do banheiro, era o algoz das grávidas). Ainda tentei dar uns chutes, uns cotovelaços no cara, fingindo ter um sono agitado, dando uns pinotes pra ver se ele se tocava. Nem tomou conhecimento. Só me restou sofrer, praguejar e dar com a cara na janela, em desespero. Seis horas de martírio. Se eu acreditasse em pecado e absolvição e redenção e essas coisas, teria certeza que minha alma estava salva. Seis horas de sofrimento.
Nunca fiquei tão feliz de chegar em São Paulo. Da próxima vez, vou com o namorado e rodopio na estrada. Ou fujo para o bagageiro quando alguém sentar ao meu lado.
.: Clara Averbuck :. 4:11 PM
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