sábado, março 09, 2002
Olha o peixe!
Então tá. Vou aproveitar a matéria que saiu na Zero Hora hoje e botar mais um teco do Máquina de Pinball aqui. Have fun.
Tomorrow Is My Turn/ No more doubts, no more fears/ Tomorrow is my turn when my luck is returning/ All these years I’ve been learning to keep my fingers from burning/ Tomorrow is my turn to receive without giving/ Make life worth living / Now it’s my life I’m living/ My only concern for tomorrow is my turn.
Dr. Nina Simone
O detalhe é que eu tinha exatas duzentas libras, praticamente nada no país da rainha velha e perfumada. Então, resolvi ver shows dos Strokes, a já citada melhor banda que surgiu nos meus últimos vinte anos, e tentar vender a pauta para algum jornaleco ou revisteca. Pretendia ver três shows, mas Murphy - o da lei, você sabe - estava no meu vôo e me fez perder dois deles. Palavras-chave: festival, lama, ingleses caridosos, esmalte descascado, desconforto, barraca, frio, calor, frio, chuva, calor, frio, três dias sem banho e um beijo no menino mais bonito da Inglaterra. E olha que é difícil, porque os ingleses são lindos e cool e gentlemen e lindos. Quase todos. Boa parte deles. Quase todos.
Pretendia ficar dez dias. No terceiro, acabaram-se minhas libras. Todas. Que se foda, estou na Inglaterra, pego trens de graça e as pessoas têm narizes empinados e me deixam ficar na casa de seus tios em Liverpool e me dão outro menino lindo e me deixam dormir em seus chãos e me dão dinheiro e são italianos, irlandeses, dinamarqueses, franceses e todos dizem que sou linda e ninguém tenta me comer. Todos são gentlemen. Nem todos. Homens, eu amo homens, homens de todos os países. Me chamem de pretty e stunning e smashing. Continuem falando com seus sotaques maravilhosos de todos os lugares do mundo. Ah, Itália. John Fante. Sempre amei ler, desde pirralha. Chorava muito em um conto chamado O Pinheirinho. Não lembro de quem é, deve ser Andersen, Perrault, um desses aí que escreviam historinhas com moral. Bem, é assim: um pinheirinho filhote sonha em ser mastro de navio quando for um pinheirão, igual aos outros da floresta. Um dia, a alegria acaba. Ele é cortado e tirado de lá ainda pequeno. O Pinheirinho, já sofrendo porque não chegou a crescer, vai para uma loja de artefatos natal e é comprado por uma família que o enfeita e o deixa feliz. Ele brilha por uma noite, mas depois é esquecido no porão e acaba queimado na lareira. Termina exatamente assim: “Que triste fim para o pobre Pinheirinho!”.
Vamos combinar: isso é traumático. Eu chorava tanto quando lia essa história que risquei tudo e fiz corações em volta do pinheirinho e escrevi “protegido pelo meu coração”. Depois, fiquei velha e chorei de novo. E foi por causa do John Fante, ítalo-americano safado e cheio de feeling, ídolo do Bukowski e simplesmente o melhor escritor do mundo - pelo menos do meu lado da cama, seja qual for o lado ou quem quer que esteja no outro. E o Arturo Bandini, que era o Fante disfarçado de personagem, amava esta mulher que se chamava Camila, Camilla Lopez. Era eu. Não, não era, Camilla tinha dois eles e era uma vaca, eu não tenho nem sou. Mas ele amava a Camilla como poucos homens sabem amar. Ele sabia, John Fante, ele sabia amar mulheres e cachorros e escrevia com tanto feeling que só podia ser italiano. E ela tinha o meu nome e eu chorei quando ele jogou o livro no deserto no Pergunte ao Pó.
Graças a deus que italianos reproduzem-se como coelhos, assim a chance de ter mais um Fante talentoso era maior. E ele veio e se chama Dan Fante e disfarça de Bruno Dante e está para o Fante Pai como O Clube da Luta está para Laranja Mecânica. A semente vive. O filho é tão bom quanto o pai. Pau no cu dos escritores pasteurizados e sem sentimento e com fórmulas que fedem a desinfetante. Quero vida e a vida não tem fórmula. Quero dor e entranhas e sentimento. Quero verdade. Quero saber que Arturo Bandini e Bruno Dante sentiram tudo aquilo. Quero sentir junto. Quero que seja verdade, autobiografia disfarçada de ficção. Bruno Dante fala da morte de seu pai, amputado e cego em uma cama de hospital com um coração que, ao contrário dos outros órgãos, se recusa a parar, porque é ali que está toda a vida. Coração. O coração de Jonathan Dante, John Fante, meu John Fante, não queria parar de jeito nenhum e seu filho o amava naquela contradição de amor aos gritos e tapas que não podem ser dados em um moribundo. E ainda tinha a bebida e a mulher que tinha amantes e a tentativa de suicídio e a internação e a falta de dinheiro. É a vida de Dan Fante. Algumas pessoas não precisam de ficção. Quero casar com um Fante e ter filhos Fantinhos. Quero um italiano. Tem essa italiana linda aqui comigo agora, lendo meu Fantinho e tomando notas. Não posso casar com ela porque já é casada e grávida e não vai ter dinheiro para sustentar o filho do cara que me levou para casa do Uncle Phil em Liverpool e que tem esse amigo maravilhoso e inglês e anal retentivo que perdeu o interesse em mim ou teve medo e para quem em questão de horas e uma dormidinha passei de very pretty e very good kisser para dumb porque desci na estação com eles quando foram expulsos do trem pelo sujeito rude e ruivo e gordo porque não tinham bilhete enquanto eu tinha o meu que não valia mas com lábia poderia talvez quem sabe valer mas eu não quis tentar porque queria ficar com eles, queria ficar com ele, mas ele não queria ficar comigo então que fosse tomar naquele cu apertado de inglês. Malditos ingleses anal retentivos, me mostrem alguma coisa que não seja essa porra dessa polidez. Vocês devem ter úlceras o tempo todo, câncer, cirrose, parem de ser controlados e frios, gritem, chorem, ela tá grávida, vocês estão fodidos, não está tudo bem, ouviu? OUVIU? Então me escuta, inglesinho de terno, me mostra o que tem aí dentro, ninguém é tão frio, não pode, o coração de vocês não é como o meu e o da Francesca e o do Fante, meu coração não vai parar quando todos os meus órgãos estiverem podres, meu coração ainda vai bater porque eu deixo, porque quero que ele bata, porque tenho sangue quente, porque sou brasileira, italiana, sou italiana e brasileira, Chirivino, Fante, Piazza, nós choramos e gritamos e corremos e nos descontrolamos, descontrolem-se, vocês não imaginam como faz bem perder o controle às vezes. Fala, Carl, me fala do seu pai, da sua mãe, da sua primeira namorada, chora, grita, se desespera, fode sem pensar, enfia o dedo inteiro em mim, me beija com a língua toda, solta o freio e vai embora, sai da minha frente com esses olhos azuis agora que eu não quero mais te ver. Nunca mais.
>>> To be continued...
.: Clara Averbuck :. 2:26 PM
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