quinta-feira, agosto 07, 2003
Era uma vez, há muitos e muitos anos, não era eu
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Caralho, como faz frio nesta terra.
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Fragmentos do meu antigo quarto de adolescente, porque nunca morei nesta casa e este nunca foi meu. Alguns brinquedos, umas bonecas e uns bichos de pelúcia. Umas caixas que estavam na minha ex-casa, que não era dos meus pais, era do meu namorado, também não era exatamente minha. Nem um pouco minha, para ser sincera. Era assim que eu sentia. Estava tudo pronto quando mudei para lá, os móveis, os espaços. Eu só me acomodei. E como me acomodei. Em todos os sentidos possíveis e imagináveis, eu me acomodei. A vida era calminha, a casa era limpinha, a cama era quentinha. Vivia tentando estragar tudo, até que finalmente consegui, ao mesmo tempo em que resolvi me mandar para São Paulo. Tomei a decisão quase sem pensar, porque era a única saída, a única coisa que eu poderia fazer naquele momento. São Paulo era o único caminho. Não sabia direito por que tinha decidido ir para lá, mas agora as coisas parecem bem mais claras. Eu precisava sair desta cidade, precisava sair de perto de tudo. Não tanto por causa da cidade quanto por minha causa. Eu precisava sair daqui, quebrar a cara, ser despejada, rejeitada, tomar no rabo, viver na sujeira, fazer sexo com pessoas que eu esquecia o nome no dia seguinte, beber, ficar doente, ficar sozinha, sozinha, sozinha, morrer de solidão, ficar pobre e não ter com quem contar. Pobre, eu precisava ficar pobre e sozinha. Eu precisava de tudo que me aconteceu, porque agora eu vejo a vida que levava aqui e meu deus, não tem nada a ver comigo, eu estava perdida, não sabia quem eu era, estava perdida no conforto e no comodismo. Tudo era tão fácil, e eu sofria por ser tudo tão fácil, não era o que eu queria.
Tudo faz sentido quando vejo esse guarda-roupas aberto na minha frente, com um bilhão de roupas que não quero nem saber e que devem ter custado uma fortuna, muitos aluguéis, muitas refeições, muitos maços de cigarro e contas de luz, porque eu não me preocupava com essas coisas e não fazia idéia do valor do dinheiro. Vejo minhas fotos, o cabelo cortado em cabelereiro, as unhas tão bem-feitinhas, meu deus, o que eu pensava da vida? Como eu vivia assim, com tantas coisas que não eram importantes? Não era eu, já disse. Eu não sabia quem era. Precisei me mandar para me encontrar. Precisei chegar em um limite, magoar uma pessoa que não merecia, fazer uma tonelada de merda para descobrir que precisava me descobrir.
Cara, ainda bem que eu me mandei.
Já que fucei nas minhas roupas e nas minhas fotos antigas, resolvi mexer em uns textos velhos e mofados de 3, 4 anos atrás, da época do CardosOnline, o e-zine onde tudo começou. Leia-se eu, a Livros do Mal, a descoberta que escrever era o que eu tinha que fazer. Tudo. Minha amizade com os mocinhos que faziam o COL, a redescoberta da minha vida, que tinha sido drenada de mim por um cuzão qualquer que era medíocre demais para entender. E tudo faz sentido. Eu estava ficando bem louca porque estava perdida, perdida.
Hoje eu entendi tudo.
Ainda bem que eu me mandei. Todo mundo devia se mandar, mudar de cidade, sair de casa, cortar o umbigo e declinar qualquer tipo de ajuda. Não há nada como a sensação de tocar a própria vida, de saber para onde ir, descobrir que o essencial na verdade era um monte de tranqueiras atravancando o seu caminho. O meu caminho. Um monte de coisas que me prendiam e que agora não fazem mais parte da minha vida. Agora eu sei, eu sinto que estou no caminho certo. Esses dois textos que encontrei foram a confirmação do que eu já sabia: minha vida tinha quer ser exatamente como é.
Senhoras e senhores, com vocês, o meu passado.
I can't see until I see your eyes
Eu queria ser maldita. Mas eu sou uma filha da puta sortuda.
Queria ter que escrever três páginas por dia para a dona da pensão não me expulsar, que nem o Leonard Cohen. Queria ter que comer migalhas e contar que uma puta me deixou ficar na casa dela uma vez. My name is Jane and I'm an addict. Queria ter que escrever em folhas de papel de pão de meio quilo. Queria ser junkie, junkie de verdade, queria ter os braços cheios de abcessos. Mas não. Eu trabalho e tenho a pele lisinha e dinheiro e pessoas a quem recorrer e tento ser sã e equilibrada.
Quero ser homeless. Quero morrer junkie aos 23 anos. Quero ser podre. Quero apodrecer viva. Podridão é inerente. Inevitável. Todo mundo tenta esconder a podridão com banhos e sabonetes e perfumes e clareamento de dentes. Dentes. Dentes podres, todo mundo sorri com dentes branquinhos mas são podres por dentro. Quanto mais brancos, mais podres. Quanto mais artificiais, mas ocas. Pessoas sem dentes são legais.
Quero ser puta e vender minhas carnes. Corpos são montes de carne, sacos de pele e ossos cheios de bichinhos que a gente nem vê e que passam o dia caminhando e nos comendo. Corpos só pesam. Almas são livres e hippies. Leves e de vestidos esvoaçantes. Não quero mais meu corpo. Não quero mais ter carnes. Não quero mais ter corpo.
Queria que não gostassem de mim. Queria que me jogassem tomates e repolhos e que eu fosse enforcada em praça pública. Queria ser maldita e suja e poder ser insana em paz. Poder deixar meus cabelos desgrenharem e ficarem iguais aos da Josefina, minha primeira boneca que tinha um black power.
Queria ter virado uma esquina diferente e não saber o que é isso que você me deu, essa pedrinha que brilha muito. Voltar no tempo, queria voltar no tempo. Pra que começar se não vai terminar? Queria voltar no tempo.
Jesus não salva. Jesus não vai voltar. Jesus tem um programa na tv. Jesus era negro. Jesus escreveu um cheque em branco. Jesus está invisível no icq. Jesus é um gênio surdo, mudo e analfabeto.
Não tem sol. É frio. É duro, é amargo. Olha e não quer ver. Não quer ver mesmo. Nem ouvir, nem explicar, nem nada. Não quer. Não pode. Não vai.
Queria não saber. Queria não conhecer. Burra, queria ser burra. Queria ser burra e sã. Sã. Queria ser sã. Queria ser sã e burra e não chorar. Chorar é coisa de mariquinhas. Eu sou mariquinhas. Chorona.
Queria acordar e te contar meu sonho e ouvir o teu. Queria chorar muito no teu ombro. Queria poder te contar tudo que caminha dentro da minha cabeça.
Não quer ouvir, não quer ver, não quer explicar. Não vai, não pode, não quer.
Eu não vou continuar tentando. Não vou. Desisti.
Queria ser ontem. Semana passada. Mês passado. Hoje não. Hoje nunca. Mas ontem passou. E amanhã ainda não chegou.
Um dia chega. Agora chega.
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Averbuck is on the table inside the cage listening to Thelonious Monster
Eu tou enlouquecendo. É sério.
Eu não sei viver no mundo dessa gente louca que trabalha e não vive, trabalha e não lê, não ouve música, não trepa, não vai ao cinema nem sai pra encher a cara. Não fazem nada, como conseguem viver? Do que eles se alimentam? Deve ser por isso que as pessoas parecem tão desinteressantes de perto, bem de pertinho. Elas estão ocas.
O mundo está cada vez mais oco.
Por isso cada vez mais essa obsessão pela forma.
É um círculo vicioso, piora todos os dias, a cada volta que a terra dá tem mais gente nascendo, gente que poderia botar um durepóxi na alma da humanidade e que vai acabar oca, de plástico, que nem o resto.
O mundo vai ser de plástico, qualquer dia nós vamos acordar na Barbie Village, na Legolândia, as mulheres não vão ter mamilos nem quadris nem pentelhos nem gosto nem cheiro e os homens vão ter aquele abdômen horrível do Ken e aquele sorriso. Pensando melhor, o sorriso do Ken e da Barbie as pessoas já têm. A feiticeira é uma Barbie inflada. A mulata Globeleza não sabe caminhar, só sambar. Eu sei que tem uma corda ali em algum lugar, deve ser debaixo da cabeleira de plástico, tem que dar corda pra ela sambar. O Paulo Zulu, o Luciano macho reprodutor Szafir, essa gente, esses homens fabricados são o Ken com pêlos, pra deixar ainda mais desagradável.
Plástico, eles devem ter gosto de plástico, plástico duro. Não aqueles bons de morder, plástico duro, indobrável e inquebrável. Inflexível. E oco, completamente oco. Casas de plástico, gente de plástico, carrinhos de plástico e flores de plástico.
Dinheiro de plástico. Tem troco pra dez?
Conversas. As conversas também já são de plástico.
Os sentimentos também. Tudo parece siliconado. As pessoas deviam colocar silicone na cabeça, pra fazer um volume.
Plástico.
Pelo menos ninguém mais vai ter que usar camisinha. Se bem que vão gozar plástico, ou qualquer coisa sintética, feia, sem gosto.
Plástico não apodrece.
Eu gosto de coisas que apodrecem.
Plástico não causa nada, só estrago.
Olhares de plástico. Olhar da Barbie. Oco. Vago. É assim que olham. É assim que os bonitinhos olham. Olham e, céus, o que eles vêem? Será que vêem alguma coisa ou são cegos? Será que é tão raro ter visão de raio x assim? Não pode.
Carinho de plástico, de látex, de nada. Não quero. Eu não estou enlouquecendo, só estou vendo como o mundo é idiota. Meio velha, admito, mas cada um tem seu tempo e o meu, infelizmente, é agora.
Chorei ontem e chorei hoje. Chorei pra caralho, solucei, não consegui dormir e fui ler Leminski, não lia Leminski há muito tempo e fui ler meus livrinhos do Leminski. Chorei muito, piscinas, lagos, rios, mares, universos de água salgadinha saíram de mim ontem e pingaram no Leminski, mas eu sei que ele gostou e ficou feliz. Eu vi ele me abanando do céu da cirrose. Ele e os outros.
Sucesso deve ser fracasso. Todos os meus ídolos morreram podres, Leminski, John Fante, John Frusciante só não morreu porque ele conseguiu live above hell, mas ele tem abcessos nos braços, ele quase apodreceu. Mas sobreviveu. E todos os homens que eu amo, que eu amei e que não me conheceram porque morreram, todas as mulheres que eu amo, Billie Holiday morreu podre. Morrer não é bonitinho. Plástico não morre. Eu quero carne, sangue, cheiro e fluidos. Eu quero pus, quero inflamação, quero dor e quero vida. Vida morre.
Eu quero morrer. Mas não agora. Agora eu só queria dormir, dormir muito, dormir até doer. Só queria não precisar fazer coisas que me violentam. Eu quero meu tempo de volta. Perdi muito tempo, muito mesmo, e agora isso volta, porque a vida é uma merda de um pêndulo, se é puxado demais para um lado ele não volta pro meio. É física, dizem, mas eu não acredito em física. Eu acredito na DDF, eu vi e eu sei que tá lá. Física não me explica, então não me serve. E não me escrevam falando sobre física. Eu não quero saber. E não me digam que eu só falo de mim. Falo, e só lê quem quer. É física.
Pêndulo do lado oposto onde estava. Muito tempo, muito tempo perdido. Pouco tempo, pouco tempo usado. Eu quero meu tempo de volta. Eu quero chorar. Eu quero dormir, eu quero gozar de manhã, eu quero eu quero eu eu eu eu ego ego ego eu quero que o mundo mude porque ele está errado. Sou infantil, sou, sou o que quiserem porque eu nem devo ser. Soul to squeeze, up from my brain is where I bleed Insanity it seems had got me by my soul to squeeze..................It's bitter baby and it's very sweet..........Oh make my days a breeze and take away my self destruction.....................
Viva Thelonious Monster, finalmente chegou meu cd do Thelonious Monster.
Escrevi sobre isso ontem, quando era sóbria e calma e tinha até dormido um pouco. Mas prefiro falar de novo. Quatro anos, esperei tudo isso pra achar um cd, procurei desesperadamente por toda a doblevê www e não tinha, nem em catálogos, nem em lugar nenhum. Aí eu achei no useddiscs.com, o paraíso da música obscura, e chegou, e eu estou amando. O cara é o Frank Jorge de Los Angeles e se chama Bob Forrest e tocou com todos os fodões.
Beautiful Mess, é o nome.
Eu ainda vou morar em Los Angeles, vocês vão ver.
Ah, vou.
E eu não vou reler isso antes de mandar pro Cardoso.
Ah, não vou.
Agora eu vou comer e dormir porque estou acordada há 48h a base de anfetaminas e efedrinas. Feio, né? Prometo que não vou parar enquanto issome fizer feliz.
Um beijo na boca de todo mundo que não é de plástico.
Tau mu.
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O primeiro foi escrito quando me apaixonei platonicamente por um menino de Curitiba que despertou todas as coisas que estavam dormindo lá num cantinho de mim, umas coisas que nunca deveriam ter dormido. O segundo foi escrito quando eu trabalhava na Fischer América e era escrava e não dormia e não tinha tempo para nada, porque se você quer ser um publicitário, você tem que dar o sangue, a vida, as noites de sono, as idéias, o tempo todo, mais um pouco de sangue e todo o seu saco. Não, obrigada, não nasci para isso. Prefiro ser pobre e livre, como os gatos.
Por isso o meu livro se chama "Vida de Gato". Não é sobre gatos. A vida de gato é a minha, porque eu posso até ser pobre, e posso até me foder, e posso até passar por um monte de merda, mas ei, eu sou livre e não devo nada a ninguém. Eu e os gatos.
.: Clara Averbuck :. 5:10 PM
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