i gave my life to a simple chord

quarta-feira, maio 14, 2003

Máquina de pinball - a peça

É muito, mas muito mesmo, assim, quase impossível conseguir dar uma opinião imparcial sobre a peça. Primeiro, porque é baseada no meu livro. Segundo, porque o meu livro é baseado na minha vida, o que complica ainda mais. O Jorge Furtado disse uma vez que autor bom era autor morto. Agora eu entendi tudo. A não ser que a pessoa que adaptar tenha entendido TUDO da mesma forma que foi escrito, o que é uma coisa raríssima, é claro que o autor vai implicar com um monte de coisas e ter ataques de autor e chorar e sapatear e xingar. Não cheguei a sapatear e xingar, porque sou uma pessoa polida e meu descontrole não chega a ser ofensivo aos outros, mas fiquei catatônica e demorei quase uma semana para começar a digerir. Comecei agora.
O texto é meu. Eu gosto do meu texto. Posso não concordar com muitas coisas que escrevi há dois anos, quando comecei o Máquina, porque estava no processo de autoconhecimento que só acontece quando você vai para bem longe de casa e se fode um pouco sem ter mamãe e papai por perto para dar um colinho, sem ter nada, quase na sarjeta, morando num quarto de empregada e comendo miojo e trio. A Camila é meu alterego. Alterego significa "outro eu". Ela não é a Clarah, é a Camila, que tem elementos da Clarah e outros que a Clarah, que é a dona e criadora soberana e toda-poderosa da Camila, inventou. E se eu que inventei, a coisa tem uma certa coerência. Não digo que não seja contraditória, toda a pessoa que se preza é contraditória. Mas tem algumas coisas na adaptação que me deixaram puta. Não tenho nenhuma intenção de julgar a peça em si, porque não entendo porra nenhuma de teatro, não tenho intenção alguma de escrever coisas para teatro e seria uma tosca se tentasse dar uma de crítica teatral, porque além de tudo, não gosto, nunca gostei do exagero das interpretações teatrais. Falo como autora, sobre a adaptação e coerência da Camila, minha personagem, amiga e criação.
A Camila, na peça, depois de porralouquear mundo afora, vira e diz: "já sei, vou ser escritora", algo como "já sei, quero cortar o cabelo". Não é por aí. Ela não fica se Bandiniando ao longo do livro, falando "eu, a escritora", porque o ato de escrever está implícito. É óbvio que a Camila é escritora. É óbvio que ela tem devaneios de escritora. Ela não decide assim, do nada, que vai escrever. Ela simplesmente escreve.
A Camila não é muito lôca. Ela é uma garota durona, quase séria, afogada em ironia. A vida dela é uma merda e ela não tem dinheiro nem emprego. Ela não fica dançando e sendo muito louca e muito bêbada. A Camila da peça é expansiva demais. A minha Camila é mais introspectiva, a ação está dentro dela. Repito, ela não é muito lôca. Ela não é moderna e locona, não fica se sacudindo pelas paredes da vida. Ela é dramática. Como eu. Eu tentei cortar os pulsos quando tinha 19 anos e depois briguei de soco com meu pai e fiquei 6 meses sem falar com ele. Quando mudei pra SP, pensava em me atirar do 8o. andar todos os dias em que acordava, porque minha vida era uma merda e eu não tinha nada. Só o meu gato, que me salvou. Drama. Sofrimento. Falta drama e sofrimento, a vida não é uma festa, a vida não é bebedeira e festa. Bebedeira e festa são maneiras de escapar de uma vida de merda. Bebida aplaca a dor. Por isso que ela bebe. Não porque é muito lôca. Porque ela sofre. Porque ela é depressiva e suicida, mas não uma depressiva suicida que fica se arrastando pelo chão. A ironia é a grande arma para fugir disso. "Minha desgraça é sempre engraçada", diz ela. E eu.
A coisa que foi mais incoerente de toda a adaptação foi a parte em que ela vai para a Inglaterra. Certo, a Camila está em São Paulo, fodida e sem amor e sem dinheiro, e de repente o pai dela dá uma passagem para a Inglaterra "com as taxas de embarque pagas"? Não, desculpe, isso não faz NENHUM sentido. Transforma a Camila em uma burguesinha de merda, uma menininha muito louca se aventurando pelo mundo com o dinheiro que papai deu. Papai não dá dinheiro para a Camila. Quando muito, empresta e cobra de volta, que ele não é palhaço de sustentar uma mulher grande e peituda daquelas. Ela que se vire. E ela se vira, e esse é o grande mérito dela: a Camila se vira. Sem papai nem taxa de embarque pagas.
O Rock. Rock não é música. Não é música que toca na rádio. Rock é algo que envolve a vida inteira da Camila e a minha também. É como o líquido amniótico, o cordão umbilical. Ela vive isso. Respira isso. Se apoia nisso. Não é apenas música. O fato de tocar tanto Strokes na peça não condiz com isso. Parece uma espécie de fanatismo desenfreado. Existem muitas outras coisas citadas no livro, muitas outras músicas tão importantes quanto, de Kinks a Weezer, de Beatles a Hi-Fives. Sim, a Camila vai ver um show dos Strokes, e sim, ela tem uma camiseta dos Strokes e adora os Strokes e o gato dela se chama Julian, mas não é só isso. Ela (nós) gosta(mos) dos Strokes porque eles representam algo que tinha se perdido, algo do passado que move a Camila, que é o rock sujo e bêbado e sem firulas.
Acho que é isso. Eu sei perfeitamente que vi a estréia, que a peça está em formação, que a Camila da Patrícia está em formação, que tudo pode ser mudado e que as peças vão se desenvolvendo à medida que vão sendo encenadas. Então esta é a opinião da autora, que pode ser descartada a qualquer momento, porque a partir do momento em que eu cedi os direitos para adaptação, abri mão da responsabilidade. Mas o texto continua sendo meu. A peça é que não é.

De qualquer forma, é muito legal ver como os outros lêem meu livro, que foi alvo de muita polêmica. Gente odiou, gente amou, gente xingou, desmereceu, teve chiliques ou virou fã. O importante é que sempre mexe com alguma coisa. E é óbvio que mexeu com eles, senão a peça não existia.

.: Clara Averbuck :. 11:56 AM

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