i gave my life to a simple chord

quarta-feira, março 12, 2003

A música alegra a alma

A vida se repete. A gente foge dos problemas e quando menos espera, lá estão eles jogando pedrinhas na janela no meio da madrugada. Ou devo dizer da manhã?

Quando eu morava em Porto Alegre com meus pais, antes da Guerra Fria, existia um problema sério que me fazia chorar todos os dias de manhã, às vezes de tarde também: a musiquinha do caminhão da liquigás. É a pior obra musical já composta desde que o homem primata descobriu que bater com ossinhos em crânios fazia um som legal. Todos os dias passavam aqueles caminhões, duas, três vezes, insistentemente tocando a música junto com a buzina e os berros de "óugááás", totalmente desnecessários, porque todo o continente já sabia que eles estavam por ali. A música, a porra da música. Quem acha que sabe o que é o inferno, quem acha que já sofreu na vida e não conhece a musiquinha da liquigás deve agradecer aos céus e dizer "deus, obrigada, eu nunca sofri, você existe e é bom".

É mais ou menos assim. Mais ou menos, porque minha memória é seletiva e eu devo ter esquecido uns pedaços e trocado uns nomes.
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Se tem o lacre azul do cachorrinho
Pode confiar
É liquigás

O entregador
Tem um crachá
De identificação
O uniforme
O caminhão
A chama é azul
A marca liquigás
Presente em todo lugar
Levando um gás melhor
De norte a sul

Se tem o lacre azul do cachorrinho
Pode confiar
É liquigás

(...)
A dona de casa pode acender sem medo
Passou pelo controle de qualidade
Trazendo um gás melhor
Sempre mais cedo

Se tem o lacre azul do cachorrinho
Pode confiar
É liquigás
(repete até a loucura)

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Escrevi um manifesto contra, em um dia de fúria. Espalhou-se como a peste, porque ninguém mais agüentava aquele martírio. Foi parar nas mãos dos diretores da Liquigás. Foi parar nas mãos do autor da música, Dudu alguma coisa, que me escreveu dizendo que eu deveria conhecer os outros trabalhos dele. Deus me livre. Ninguém agüentava mais, o mundo rebelou-se e finalmente a maldita musiquinha foi proibida.

Então eu mudo pra São Paulo e o que acontece? Hein? Nada. Não enquanto eu morei em Pinheiros, na Vila Madalena, na Vila Mariana. Mas no momento em que vim para Santa Cecília, minha vida acabou. Meu pesadelo voltou. Um pouco mais leve, devo admitir, já que não tem letra nem refrão nem fala de um cachorrinho que na verdade é uma mistura bizarra de grifo e dragão com azia e um rabo de macaco mas que eles insistem em chamar de "cachorro de seis patas" no site da Agip, a principal culpada de tudo. Se bem que não sei dizer o que é mais nocivo: um jingle de caminhão de gás ou a destruição completa de Pour Elise.
Coitado do Beethoven. Tenho certeza que se dissessem a ele "olha, amigão, essa linda obra inspirada que você está compondo vai virar uma reles musiquinha pra avisar a chegada do gás e todo mundo vai te odiar", ele riria. Ou ficaria neurótico e pararia de compor para sempre.

E alguém pode por favor me dizer porque eles não passam só uma vez por dia, uma vez por semana? Alguém conhece algum comprador de gás compulsivo, que fique fazendo estoque de gás com medo da guerra ou algo assim? Eu não conheço.

Ahhhh!
Só sei que não agüento mais.
E não é só o caminhão de gás não. Já seria suficientemente ruim, mas não, não, ainda tem o cara das melancias. Todos os dias o cara das melancias tenta lobotomizar as pessoas. Melancia doce. Melancia vermelha. Melancia madura, doce, favo, é um favo é um mel, olha a melancia. É uma gravação, o texto é o mesmo, todos os dias, todos os dias de todas as semanas de todos os meses, faça chuva ou faça sol. E funciona. Eu mesma já quis descer e comprar todas as melancias deles depois de quebrar o auto-falante, mas deu preguiça e eu não tinha dinheiro.

Mas foda-se. Vida de pobre é isso aí: não tem onde morar e ainda fica reclamando da casa que tem. Bem coisa de grávida desocupada, mesmo. Antes eu pelo menos era só desocupada e podia me distrair bebendo. Agora eu bebo chá. Aliás, vou ali lavar a louça, que deixei pra depois ontem.

.: Clara Averbuck :. 3:35 PM

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