terça-feira, novembro 19, 2002
Rockaway beach
Estou na praia, em lua de mel - literalmente -, sem fumar a três dias, tomando sol, não bebendo e não fazendo nada de errado. Preciso voltar logo para São Paulo ou acharão que fui abduzida e substituída por uma cópia barata e comportada da minha própria pessoa.
Na verdade, acho que fui mesmo.
Se fosse eu, como explicar essa falta de cabelo? Sim, porque eu não tenho mais cabelo. Acabou o cabelo. Não é mais rosa. Não tem mais franja caindo no olho. Não tem mais nada, cansei e cortei tudo com gilete sensor. Pareço um menino, tipo acordei-levantei-sou-descabelada-e-feliz. Batizei o corte de out of bed. Isso porque meu cabelo andava legal demais, então eu tinha que estragar tudo para poder reclamar até que a franja chegue no queixo de novo. Minha vida capilar consiste nisso, sabe. Esperar chegar onde quero e depois cortar, estragar tudo e reclamar até chegar onde quero de novo.
Ei, acabei de descrever minha vida sentimental.
Por falar nisso,
e o Vida de Gato?
Vai bem, obrigada. Agora estou sendo escritora e mexendo nele. Doeu demais pra sair, não vou deixar assim, descabelado e malvestido. Preciso dar um trato no menino, aparar umas vírgulas aqui, depilar uns parágrafos ali, esticar a coluna de umas frases e trocar a cor de outras. Ele pede, ele quer. O Máquina não quis nada disso, maldito adolescente rebelde, saiu de casa sem tomar banho nem se pentear, usando um all star vermelho, uma calça furada e camiseta de banda velha, ouvindo punk rock no discman. Adolescente é assim mesmo, eu é que não ia ficar sendo uma mãe repressora.
Olha esse meu ombro dourado. Tsc, tsc. Chegar em São Paulo e comprar um esfregão pra tirar essa cor saudável de mim. E uma peruca, porque viver sem cabelo no olho é muito esquisito. Perucas devem ser caras, então acho que simplesmente vou comprar uma franja. Ou pedir em um cabelereiro desses, deve ter alguém que corta o cabelão e deixa as madeixas lá pelo chão, atiradas e abandonadas. É só prender com um grampo e tirar pra dormir, o que seria bem prático, porque eu não vou acordar com um ninho de miojo caindo enozado na minha testa. Posso até comprar uma peruca black power e resolver meu complexo de branquela. Perfeito.
Não, não é perfeito.
Acho que odiei meu cabelo. E agora?
Estou em crise. Vou começar a me achar gorda (eu sou), nariguda (eu sou) e vesga (eu sou um pouquinho) e com um cabelo horrível (eu estou).
Olá, eu sou mulher, igualzinha a todas as outras, alguém aí ainda tinha dúvidas? Por favor, não tenham. Eu sou complexada, fashion victim, fodida no rabo pelo padrão de magricela de perna torta e queria ser uma Barbie, igualzinho a todas as meninas, só que eu assumo. Desculpe, eu gostava de Barbie, não de Susie, e agora eu pareço a Susie e não estou nem um pouco feliz com isso.
Parei de comer. Deu. Nada de comida, só bebida de agora em diante. E horse pills. Coloridas, lindas, divertidas e sortidas, como balas no pote de doces da casa da tia Jussara.
Oh, olá, Camila. Está gostando da praia?
Ai, ai, ai, ai, ai, ai.
Vou fazer uma peruca de algas.
Sei lá, pode ser que fique legal.
Tédio.
Boredom.
E cabelinhos pinicando.
E saudades da Ilana.
E nada, nada, nada para fazer. Nada. Tédio.
Me recuso a descer até a civilização.
Esta casa é longe de tudo, sabe, perto do mar, de cara para o mar, acordamos com ele lambendo nossos rostos todas as manhãs junto com o sol e o barulho das ondas e das crianças gritando, porque feriado é uma merda. E tem uma escada que é a maior de todas do mundo inteiro, e cansa, e eu fumo, ou fumava, porque faz três dias que eu não engulo fumaça, mas cansa igual porque eu não tenho fôlego. Que horror. Quero voltar para a cidade, pelo sakê de cristo. Respirar fuligem, não nasci pra ficar no meio desse monte de insetos. Tenho alergia a mosquitos e sou fresca e não gosto de bichos zumbindo nos meus ouvidos e me picando. Eu gosto de mato, mas só quando tem a possibilidade de geladeira e privada. Me recuso a acampar e me limpar com folhas, é até ultrajante para aqueles que inventaram o esgoto e o papel higiênico de maçã verde.
E ainda caiu uma janela no meu dedo. Quarto dedo da mão esquerda, também conhecido como anular. Aquele mesmo que o meu namorado quebrou, não é lindo? Unidos pela dor e pelo ridículo. Minha unha vai cair, está completamente roxa e inchada e grotesca. E eu não consigo mexer nem dobrar o dedo. Então saí daquele puta show dos Phantom Surfers em Floripa e fui pro H.U. - hospital universitário, que tem cheiro de vômito e estagiários que são incapazes de detectar uma fratura e senhoras do raio-x que dormem e tiram o raio-x da parte errada do dedo. Uma maravilha, o melhor hospital de Santa Catarina. Acho que meu dedo está quebrado, mas só vou descobrir quando voltar para a cidade.
E agora eu vou fumar drogas e dormir, porque é a minha única chance de não morrer de tédio.
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Pronto, fumei.
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Aspirei. Segurei. Segurei um tempão, até doer. Daí soltei.
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E o filha-da-puta não sabia nem colocar uma vírgula direito.
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Ah, vou traduzir umas coisas.
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um poema quase feito
Good Ol' Hank
te vejo bebendo em uma fonte com mãos pequeninas e tristes, não, suas mãos não são pequeninas
são pequenas, é a fonte é na França
de onde você me mandou aquela última carta e eu respondi e nunca mais tive notícias suas. você escrevia poemas malucos sobre
ANJOS E DEUS, tudo em caixa alta, e você
conhecia artistas famosos e a maioria deles
eram seus amantes, e eu escrevi de volta, tudo bem, vá em frente, entre em suas vidas, não tenho ciúme porque nós nunca nos conhecemos. chegamos perto uma vez em New Orleans, meia quadra, mas nunca nos conhecemos, nunca nos tocamos. então você foi com os famosos e escreveu sobre os famosos, e, claro, o que você descobriu é que os famosos estão preocupados com sua fama -- não com a linda garotinha na cama com eles, que os dá aquilo, e então acorda de manhã para escrever poemas em caixa alta sobre
ANJOS E DEUS. sabemos que Deus está morto, eles nos disseram, mas te ouvindo eu não tinha certeza. talvez fosse a caixa alta. você era uma das melhores poetisas e eu disse aos editores, aos caras das editoras, "publiquem-na, publiquem-na, ela é louca mas é mágica, não há mentira em seu fogo." eu te amava como um homem ama uma mulher que nunca toca, apenas escreve, guarda fotinhos. eu teria te amado mais se tivesse sentado em um quartinho enrolando um cigarro e ouvindo você mijar no banheiro, mas isso não aconteceu. suas cartas ficaram mais tristes. seus amantes te traíam. criança, escrevi de volta, todos os amantes traem. não ajudou. você disse que tinha um banco de chorar e era ao lado de uma ponte e a ponte era sobre um rio e você sentava no banco de chorar todas as noites e chorava pelos amantes que te machucaram e te esqueceram. escrevi de volta mas nunca mais tive resposta. um amigo me escreveu sobre seu suicídio 3 ou 4 meses depois. se eu tivesse te conhecido provavelmente teria sido injusto com você ou você comigo. foi melhor assim.
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Queria poder dizer isso, "foi melhor assim". Nunca é, independente do que assim seja.
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A new day, a new dawn, not a new life, just the same old girl in the mirror. And her hair looks awful. And her body looks bloated. Just the same old girl in the mirror.
.: Clara Averbuck :. 3:14 PM
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