i gave my life to a simple chord

sexta-feira, julho 26, 2002

Vida de Gato
Mais um pedacinho exclusivo no b!p

- Quer um teco, Camila?
- Não cheiro.

Dois dias sem dormir, três cervejas na cabeça. Olhei para o meu amigo, que estava tão perdido quanto eu. Dei mais um gole no meu uísque. Era bom. Não sentia esse gosto há muito tempo, de uísque bom. E era grátis. O paraíso deve ter torneiras de uísque bom. Fiquei ali, jogando meus problemas no copo. Maldito. Maldito seja você, que não me sai da cabeça. Malditas sejam as suas mentiras e o turbilhão que não me deixa um dia inteiro em paz, e mais malditos ainda sejam os teus olhos e o teu sorriso que não permitem que me concentre em nenhum outro homem. Maldito, maldito. Te amo e não vou te esquecer mesmo que viva cem mil anos.

- Tem certeza, Pinky? Fiz uma bem gordinha para você.

Levantei sem pensar. Andei até o prato e peguei a nota sebosa de 50, que poderia me sustentar por várias semanas. Me aproximei do prato, e de repente a sala sumiu, meu amigo sumiu, a mesa sumiu, a música parou, só eu, o prato branco e o pó branco reluzindo como neve. Aspirei com força e senti o gosto amargo no nariz, que ficou dormente. Maldita cocaína. Era boa. O diabo estava ali, do meu lado, rindo. Me nocauteou de novo. Te pego no próximo round, filho da puta. Você nunca vai me ganhar. Eu sou melhor que você, além de ser maior, mais gata e ter asas.

Peguei meu amigo pela mão e o puxei para fora. O céu estava completamente prateado e nos abraçava, tentando dizer que tudo ficaria bem. Ficamos ali com os pescoços tortos, sentindo o vento frio e os narizes formigando.

- Estou com medo dessa gente. Não sei qual é a deles e estou bêbado.
- Deixa comigo. Eu cuido de você.

Deixe-me falar sobre meu amigo. No princípio, era a discórdia. Trocávamos alfinetadas em listas de discussão na internet. Antipatia mútua, gratuita e imediata. Ele me odiava. Eu o achava um prego. Saímos da tal lista, um de cada vez, e nunca mais nos falamos. Até que Arturo nos reaproximou sem querer. Eram amigos, os dois. Arturo, não contente em ser a mentira mais linda do mundo, me fez ter vontade de ser legal. Nunca tinha tentado, passei a vida sendo antipática e ficando nos cantinhos, sem fazer o menor esforço. Não queria, nunca quis ninguém por perto. Nunca gostei de gente, grandes grupos me parecem um bando de moscas sorrindo umas às outras e zumbindo sem parar. Não quero nenhuma delas à minha volta, prefiro ficar sozinha na merda. Mas Arturo parecia gostar tanto de seus amigos quanto eu gostava dos meus, parecia saber que amizades são sagradas tão bem quanto eu. Poucos entendem o que significa ser sagrado para os que não acreditam em nada. E ele, Arturo, parecia entender tudo o tempo todo. Então, decidi ser legal. Parar de usar minha casca de espinhos e me deixar ser doce. Fomos nos aproximando, eu e Luís, ele ainda desconfiado por causa do meu histórico. Quando nos demos conta, lá estava eu em Sorocaba, e nós estávamos bêbados em uma pracinha, deitados na grama molhada com todas as nossas bundas, dedos e narizes absolutamente petrificados. Nos encharcamos de vinho ruim e conversamos sobre a vida, sobre sonhos bestas, sobre amor e dor, saber se foder, contamos histórias, rimos bastante e nos despedimos com um puta abraço na rodoviária, com a certeza de que nos veríamos logo e felizes por ganhar um amigo. Fomos cada um para o seu lado, ele para casa e eu de volta para São Paulo, os dois olhando o céu bêbado rosa-azul-laranja-branquinho e entendendo que não podemos fugir de nós mesmos. Um tempo depois, fui visitá-lo de novo e fomos levados para esse sítio com pessoas estranhas, um homem de mullet que me chamava de Pinky, sua senhora, uma professora de literatura vencida pela vida e o dono do lugar, um careca que surgiu de repente com um mini-roupão que lhe deixava as coxas de fora e um óculos de sol que recusava-se a tirar, mesmo sendo noite fechada e estarmos no meio do mato escuro. Tudo bem, porque eles nos davam drogas e uísque caro enquanto eu levantava os braços e inaugurava o Black Label Motorcycle Club, um dos piores trocadilhos da minha vida, apesar do uísque ser sensacional. Depois de certo tempo, tive a impressão que havíamos nos tornado espelhos para aquela gente, que éramos o que eles gostariam de ter sido e não foram. A falta de coragem fode com o mundo, derrota a todos com a facilidade de um piparote. O mundo é cheio de covardes e suas desculpas para terem fodido suas vidas, e eles tentam nos convencer de que foi necessário, que fizeram as escolhas certas em nome da comodidade e do cagaço de perder tudo. Depois, quando entopem-se de bens, quando envelhecem, quando olham para trás, se dão conta que perderam a vida. Arrependimento é o sentimento mais inútil. De nada adianta andar para frente olhando para trás, o melhor que pode acontecer e desabar em um buraco e morrer lá, choramingando que deveria ter olhado para frente e se arrepender mais e mais até morrer velho e enrugado como uma fruta seca.


.: Clara Averbuck :. 5:39 PM

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